Se o encerramento das atividades for inevitável, o empresário deve tomar diversas providências para evitar problemas no futuro
Artigo de Perical Maricato*
Em tempos de Coronavírus, fechar gradualmente a empresa pode ser uma solução, bem melhor do que fechá-la abrupta e desorganizadamente. Vender ou até doar as quotas, também pode ser opção, se tudo for feito com cuidado. Com quarentena e calamidade pública, é certo que dezenas de milhares de empresas, principalmente de micro, médio e pequeno porte, fecharão suas portas definitivamente por não faturarem ou o fazerem de forma insuficiente para pagar custos. Após a quarentena, teremos ainda longo período de recessão, com mais quebradeira.
As empresas enfrentam retração dos consumidores, despesas com funcionários, estoques comprados e não vendidos, fato do príncipe ( ter que fechar as portas obrigatoriamente, por ordem de autoridade), e as de menor porte, com poucas exceções, não têm reservas financeiras para longos períodos de inatividade ou recessão, não têm acesso a financiamentos de longo prazo e com juros suportáveis. Podem até reduzir drasticamente seus custos a, com muito esforço, menos de 20% dos tempos normais, como explico em cartilha sobre soluções para a crise do coronavírus nas empresas (http://www.maricatoadvogados.com.br/artigo/cartilha-de-solucoes-para-a-crise-do-coronavirus-nas-empresas mas mesmo assim, muitas não sobreviverão.
E então, é bom que o empresário se esforce para vislumbrar até onde suportará permanecer aberto, e, se perceber que não sobreviverá, pense em ir cortando custos e em como fechar as portas de forma gradual e organizada, evitando ter como herança problemas futuros: reclamações trabalhistas, execuções fiscais, inquéritos ou processo de falência com investigação sobre paradeiro do patrimônio da empresa, acusações de conduta irresponsável, processos penais de sonegação entre outros. Se tudo não estiver em ordem, bem explicado, pode ocorrer a desconsideração da pessoa jurídica nas reclamações e ações e se isso acontecer, o credor poderá pedir a penhora de seu patrimônio particular (e provavelmente dos demais sócios). O encerramento irregular também impedirá o empresário de abrir ou se associar a novos negócios ou mesmo ocupar um bom emprego por longos anos. Enfim, fechar a empresa sem planejamento e deixando problemas pode ser fonte de dor de cabeça por mais de dez anos.
Se as dificuldades já são tantas que fazem prever o encerramento de atividades, talvez seja o caso de aproveitar as energias físicas e psíquicas e as reservas financeiras, quem sabe a venda do patrimônio da empresa, os estoques, reunir créditos ainda possíveis, e ir desligando e indenizando funcionários, liquidando dívidas e obrigações, gradualmente, extinguindo ou reduzindo obrigações até onde for possível. Quanto menos obrigações sobrar, tanto mais fácil ir liquidando-as, fazendo acordos, com o tempo.
As dívidas trabalhistas
No encerramento e com recursos limitados para pagar dívidas, a primeira providência é relacionar todas e definir as prioritárias. Em geral recomenda-se que as trabalhistas devem vir em primeiro lugar, fazer acordo com funcionários, deixando por último as que podem ser liquidadas a médio e longo prazo: com bancos e fiscos, que demandam mais tempo para propor ações de cobrança. No meio temos locador, prestadores de serviço, fornecedores, que podem receber tratamentos específicos, acordos de pagamento parcelados.
A liquidação das obrigações trabalhistas a nosso ver são prioritárias não só pela questão humanitária, como por ser a Justiça do Trabalho mais eficiente e resiliente em condenar a empresa, executar créditos dos reclamantes e decretar com mais facilidade a desconsideração da pessoa jurídica.
Certamente, a empresa e seus sócios terão sua vida e declarações de renda dos últimos cinco anos vasculhadas, na busca de bens que paguem pelos valores das condenações (bens de algum valor, contas em banco, veículos, imóveis, ações, créditos, doações ou vendas no período pré-insolvência, etc). Não é difícil conseguir-se em outras áreas da justiça a chamada prescrição intercorrente (extinção da ação por ficar mais de cinco anos arquivada, sem atividade do credor), o que não costuma ser admitido na Justiça do Trabalho. Ou seja, a busca de bens durará muitos e muitos anos.
Melhor pois, ir liquidando gradualmente essas obrigações, fazendo acordos, parcelando pagamentos, procurando homologá-los na Justiça do Trabalho sempre que viável. Se há um número significativo de funcionários, convém tentar um acordo coletivo, com participação do sindicato laboral.
Importante que, mesmo se fechada a empresa, mesmo que o empresário sinta já não dispor de nada mais com que responder pela dívida da reclamação (vale para qualquer outra cobrança ajuizada), ele deve evitar a revelia ou seja, deve se defender em juízo visando reduzir o valor da possível condenação tanto quanto for viável. E isso porque em decorrência da condenação ele pode ficar mais que década sendo cobrado insistentemente e quanto mais elevada, mais o credor insistirá em receber. Por outro lado, nunca se sabe se o empresário não conseguirá se reabilitar no mercado e voltar a ter condições de abrir ou voltar a ser sócio de empresa, ou pode acontecer dele receber herança. E então, deixando correr as cobranças sem se defender, poderá ser cobrado por valores vultosos, até delirantes, ter penhorado até os bens que receber de herança.
Outra consequência será o registro dessas reclamações (tanto como demais ações de cobrança) nos distribuidores de ações de cada área da justiça (trabalhista, estadual, federal), dos serviços de proteção ao crédito, tolhendo financiamentos, cheques especiais e cartões de crédito, a possibilidade de determinados empregos, dificultando o exercício de profissão, por muitos anos, até mais de década.
Defesa contra cobrança de fornecedores, prestadores de serviço e do fisco: outras cobranças irão acontecer, onde convém se defender, tentar acordo.
Com fornecedores e prestadores de serviço, deve-se ir aos poucos cortando despesas e tentando acordo, como, por exemplo, devolvendo produtos, trocando dívida por equipamento, reduzindo e parcelando outras existentes. Para um credor que percebe a insolvência do devedor, é bem melhor receber o equipamento semi usado de volta, parcelar uma dívida em 30 pagamentos ou mais; com fiador melhor ainda, é receber, do que arriscar ter que ir a Juízo, gastar com advogado e nada receber ou ter que esperar mais tempo ainda, devido a lentidão do Judiciário.
O fisco (dívidas tributárias e previdenciárias) é outro problema no horizonte. Bem mais demorado, o fisco, há o federal, os estaduais e os municipais, esperam acumular a dívida tributária por meses seguidos para só então iniciar os procedimentos de cobrança extra judiciais, seguido de execuções fiscais, que também poderão ficar por mais de década correndo nos fóruns, sempre na busca de bens a penhorar.
Em certas situações o fisco permite parcelamentos, às vezes por programas especiais (refiz), que convém aproveitar se o empreendedor sabe que no futuro próximo irá tentar empreender ou tem bens a penhorar. Espera-se que programas de parcelamento sejam aprovados após a pandemia.
Cuidado com aumentar ou "rolar" a dívida, recusar acordos, pois o Judiciário pode ser mais lento, mas as cobranças no mesmo são feitas com incidência de juros, correção, honorários de advogado do credor, multas, custas judiciais. Isto quando o devedor não tem que constituir e pagar o próprio advogado. Então, se puder fazer um acordo, evitar o ajuizamento, lembre-se que isso ajudará também a evitar problemas no futuro. Acordos também podem ser feitos a qualquer momento dentro da ação judicial ou mesmo quando ela já está em fase de execução.
Recuperação judicial, falência, insolvência...
A empresa devedora pode ainda apelar para o processo de recuperação judicial, complexo e demorado, vantajoso quando tem patrimônio, estoques, créditos a receber, para negociar com seus credores, possibilidades de recuperação. É recurso pouco usado por pequenas empresas e no setor de serviços, mesmo por médias e grandes, pois nesta é raro existir estoques para ir trabalhando e patrimônio.
Poderá ainda pedir auto falência ou ter sua falência requerida por terceiros e decretada pelo Juiz. É procedimento que convém evitar, especialmente se não se têm livros contábeis em ordem, não se sabe explicar onde foram parar recursos e patrimônio.
A insolvência atinge a pessoa física, como no caso dos sócios que, após a desconsideração da pessoa jurídica, também não conseguem adimplir dívidas. Nesse caso, ficam "insolventes", perderão o crédito, a disponibilidade do nome para novo empreendimento por vários anos (formalmente cinco após o encerramento da falência).
Cobranças de locadores e bancos:as cobranças de bancos e locadores submetem-se às situações acima, com poucas diferenciações.
O locador pode apenas cobrar os alugueres atrasados, mas costuma antes ajuizar despejo por falta de pagamento e nada pior para o bom nome da empresa ou do fiador, se existir. O credor costuma atrasar mais de três meses a proposição da ação de despejo, pois rotineiramente se tenta negociações e acordos. Mesmo após propor a ação, o despejo só é decretado, em condições de normalidade do funcionamento do fórum, mais de seis meses após (as liminares de despejo estão proibidas até o final do ano), muito mais ainda se for discutir força maior ou o locatário tiver alguma justificativa para não pagar (uma reforma necessária há muito solicitada e não feita). No entanto, pode ser uma dívida que irá ficando cara e se a empresa vai fechar mesmo, pode convir evitar esse passivo acumulando-se e rescindir o contrato amigavelmente, parcelando a dívida que restar. Reitere-se que com raras exceções, os credores preferem receber valor menor ou a médio e longo prazo do que ficar litigando. Veja mais em cartilha sobre alugueres: http://www.maricatoadvogados.com.br/artigo/o-direito-de-renegociacao-do-valor-dos-alugueres-a-serem-pagos-durante-a-crise-do-coronavirus-e-periodo-de-recessao-que-se-seguira
Quanto aos bancos, os negócios mais rentáveis do país, já têm provisão de perdas, e perante situação difícil do devedor, também tentará negociar por meses oferecendo redução de valores e parcelamentos de longo prazo, condições, tanto melhores se houver avalista.
Inexistindo propostas razoáveis do banco, convém a empresa consultar advogados, pois os contratos bancários não raro têm cláusulas abusivas, juros exorbitantes e inadmissíveis na convivência civilizada, inerentes e obrigatórias, mesmo ao mercado. Perante um processo judicial, o banco fica ainda mais propenso a fazer acordos razoáveis. E quando percebe que o devedor não tem como pagar, pode desistir de prosseguir com a ação e permitir seu arquivamento e a prescrição intercorrente. Será muito ruim, no entanto, se o banco vender esse "crédito podre" a empresas especializadas em cobranças, estas insistirão muito mais no recebimento, atormentarão o devedor com telefonemas.
Força maios e outros fundamentos de resistência do vendedor
Em sua defesa, nas dívidas acumuladas ou agravadas pela crise do coronavírus, a empresa pode alegar descumprimento por motivo justo, a quarentena, fuga de consumidores, acontecimentos responsáveis por oneração excessiva das obrigações, imprevisibilidade, fato do príncipe, etc. Sem dúvida são fatos notórios, que podem ajudar a rescindir contratos (sem pagamento de multas) e reduzir e/ou parcelar dívidas além de evitar desconsideração da pessoa jurídica, tudo como explicado mais suscintamente, inclusive com fundamentos jurídicos, nas cartilhas supra referidas.
Desconsideração da pessoa jurídica
Como dito acima, um dos maiores riscos que corre o empresário que fecha a empresa ou acumula dívidas sem pagar é a desconsideração da pessoa jurídica. Acontece quando o credor, constatado que a empresa não tem como pagar a dívida e nem bens para serem penhorados, pede que o juiz desconsidere a empresa e dirija a execução contra o patrimônio pessoal de seus sócios. A desconsideração só deve ocorrer caso haja alguma irregularidade na atividade da empresa: dívidas excessivas ou suspeitas, livros contábeis incompletos, sumiço de patrimônio, sonegação de informações, desvio de finalidade, confusão patrimonial, atos ilícitos e irregulares, enfim, e contra o sócio ou sócios responsáveis. Muitas vezes, o simples fechamento de portas sem informar a junta comercial, de novo endereço, pode ser suficiente para a medida extrema.
E então a perseguição do credor continuará, contra o sócio (ou sócios), pelo que possui exceto o bem de família (onde reside a família), muitas vezes pelo que tiveram e venderam quando já era visível a insolvência, por possíveis aquisições no futuro, inclusive herança do pai, da mãe ou quem quer seja. Se esse empresário formar nova empresa ou entrar de sócio em alguma outra, o patrimônio ou quotas desta, correspondente a esse empresário, serão suscetíveis de penhora.
Por isso, é importante que o empresário que resolve fechar as portas em definitivo, decida se não vale a pena já ir vendendo patrimônio e pagando como pode os credores. E deve ir fazendo provas, e as guardando por muitos anos, dessa sua conduta, da boa fé e idoneidade com que encerrou seu negócio.
Muitas vezes o empresário não só não desvia bens, como até pede empréstimos à família ou terceiros, vende seu veículo ou o apartamento na praia, para pagar as dívidas parte das dívidas da empresa, mas não guarda documentos comprovando sua conduta ética, responsável. E então, quando requerida a desconsideração da pessoa jurídica, anos após, não sabe como provar sua inocência ante a acusação de ter encerrado ilegalmente sua empresa, sumido com o patrimônio.
O encerramento legal, venda da empresa, novo sócio
O mais seguro no encerramento das atividades de fato, é fazê-lo também formalmente, junto aos órgãos públicos. Mais de 90% das pequenas empresas que fecham as portas de fato no país não fazem isso, pois além de pagar as dívidas, é necessário dezenas de documentos. Não obstante, sendo possível, é bem melhor, pois o empresário fica reabilitado para novas ações no mercado.
Quem também prevê que terá que encerrar a empresa pode procurar imediatamente compradores. Evidente que se puder vender tão bem que possa recuperar seu investimento e trabalho, até ter lucro, o empresário deve fazê-lo. Mas em certas situações, na "bacia das almas", findo o gás e próximo do fechamento de fato, existindo um comprador idôneo (não só pelo nome, mas também por possuir patrimônio, fiador, garantias), que se responsabilize por todas as dívidas, convém repassar a empresa mesmo que seja por preço simbólico, verdadeira doação.
Se a empresa tiver bom nome, marcas, produtos, good will, com novos sócios e injeção de capital poderá se reerguer. Nos tempos atuais, os valores intangíveis normalmente valem muito mais que valores materiais, patrimoniais. O empresário não deve se apressar, ficar afobado, deve pesquisar muito bem a quem está vendendo, exigir alteração do contrato na junta, pois do contrário estará apenas aumentando seus problemas em vez de ter soluções. A venda sem essa certeza, tanto como nos demais casos, mas com muito mais necessidade, deve ser precedida de contrato detalhado, formal, com orientação de advogado, um anexo de bens, créditos, dívidas, estoques, faturamento médio (antes da crise) etc, e rápida alteração do contrato social na junta comercial, na data em que se entrega a posse e administração do negócio.
A venda será tanto mais fácil quanto melhor estiverem os livros, quanto menor for a dívida, conservado o patrimônio, razoável a duração do contrato de locação e o valor do aluguel, o crédito na praça, os riscos trabalhistas e outros.
O empresário poderá ainda optar por procurar sócio com capital e disposição de investi-lo no negócio, o que não é nada fácil em tempos como o atual, poderá vender algo e injetar ele mesmo recursos para sobreviver a etapa tão difícil, todas fórmulas que devem ser bem pensadas, sem emoção, sem se apegar por demais à empresa, sem tratá-la como alguém da família, pois esses momentos exigem frieza e racionalidade.
Conclusão
Enfim, o melhor a se fazer quando a sobrevivência não é mais possível, é vender a empresa, procurar novo sócio se for possível ou conveniente, ou inexistindo alternativa, preparar o encerramento de atividades de forma planejada, negociando e pagando dívidas prioritárias o tanto como for possível, encerrar atividades legalmente se possível. Mesmo que ocorra o fechamento repentino, em vez de sumir e fingir-se de morto, como fazem muitos, devido não só ao fim dos recursos, mas também ao esgotamento, ao cansaço físico e psíquico, melhor é arrancar ainda mais energias e nos dias seguintes procurar se explicar, reduzir ao máximo as dívidas, atender com respeito e deixar boa imagem junto aos credores, mostrando que fecha como última alternativa, por não haver mais opções. Uma boa impressão poderá ajudar no futuro, se houver condições de negociar dívidas. Conforme o caso, poderá sobrar pelo menos o maior dos capitais para uma nova tentativa de empreender: o nome.
*Percival Maricato é advogado e presidente da Abrasel em SP